Meu pai morreu em agosto de 2008, quando eu tinha 16 anos. E além de lidar com aquela dor, tinha que continuar indo bem na escola. Eu era boa aluna, mas não estava conseguindo estudar algumas matérias sozinha, então pedi a minha mãe que arranjasse alguém para me dar aulas particulares nos meus horários vagos. Pois bem.
As aulas seriam na casa do sujeito, um homem que morava com a mãe idosa. No primeiro dia, correu tudo normalmente. Tinha outro aluno lá, um menino. O cara me ajudou a resolver algumas questões de Física que eu não tinha entendido. No segundo dia, não sei o que aconteceu. Quer dizer, sei o que aconteceu, mas não entendo o motivo.
Na hora que eu estava indo embora, ele disse "você está triste porque seu pai morreu" e me abraçou. Não me abraçou, me apertou. Eu não retribuí, não tive reação nenhuma, fiquei paralisada. Provavelmente porque tinha percebido alguns olhares inadequados, e uma tentativa de aproximação constrangedora. Já havia tomado a decisão, antes do "abraço", de não voltar mais. Naquele dia, estávamos sozinhos. Eu estava sozinha.
Só lembro de responder "eu não quero te abraçar" e sair, enquanto ele ficou me olhando meio assustado e contrariado.


Hoje eu fui almoçar num restaurante com minha mãe, e pegamos um táxi. Hoje eu tenho quase o dobro da idade que eu tinha naquela época. Quando entrei no táxi, senti um cheiro que me transportou diretamente para essa recordação: foi o cheiro que ficou capturado na minha memória como esse assédio patético de uma garota triste que estava de luto. O cheiro de algum perfume masculino tentando mascarar o odor de cigarro.
Ainda bem que foi uma corrida curta, porque eu só queria chegar logo e sair dali. Queria me lavar e apagar qualquer vestígio de lembrança ruim, repulsa, medo, desconforto. Quase uma sensação espiritual mesmo.
Enfim, tomei banho e fiquei em paz. E aposto que o taxista velhinho fumante não é má pessoa, apesar de carregar o cheiro de um trauma meu.
Se tem uma coisa que a sociedade capitalista odeia é a “zona de conforto”. Ficar na zona de conforto é tido como o maior dos pecados, coisa de gente sem firmeza de caráter e que não se esforça o suficiente.
Temos que produzir o tempo todo. Estudar, trabalhar, meditar, fazer exercícios. Você só tem o direito de ser ocioso, às vezes, em seu horário de descanso – que, inclusive, poderia ser melhor aproveitado, com atividades que tivessem alguma utilidade para o mundo, ao invés de perder horas maratonando séries sem conteúdo.
A sociedade capitalista está sempre te perguntando: “quais são os seus sonhos? Aonde você quer chegar? Quais são as suas metas para esse ano?”. E eu vou problematizar cada uma dessas perguntas.
Em sua sólida ilusão romântica, a sociedade capitalista impõe que você tenha sonhos. Determina que qualquer pessoa que valha a pena possui sonhos. E também espera que, ao alcançar seus sonhos, você os substitua por outros. Porque, segundo essa lógica quimérica, as pessoas precisam estar correndo atrás de algo, seja lá o que for, e jamais podem se sentir completamente satisfeitas.
Nem os idosos possuem o direito de se acomodar. Fico impressionada com a comoção que causam notícias como “idoso de 80 anos se forma” etc e tal. Eu não posso deixar de admirar essas pessoas que, provavelmente, não tiveram condições de realizar muitas coisas na vida quando jovens, e que se dedicam para alcançar objetivos já com idade avançada. Mas a comoção geral me impressiona porque vem carregada daquele viés de meritocracia, esforço e recompensa, “você pode fazer tudo o que quiser”. Louros aos idosos que querem morrer estudando, trabalhando, viajando. Aos que só querem jogar xadrez na praça, fazer seu crochê numa velha cadeira de balanço e dormir às seis da tarde, desprezo.
É impensável, para a sociedade capitalista, a possibilidade de que uma pessoa queira, apenas, ficar em paz. Ter um emprego razoável, tempo livre nos feriados e finais de semana, uma rotina comum, férias na praia mais próxima. Quem vive assim, sem empreender grandes feitos, sem correr atrás, é visto como medíocre e infeliz no admirável mundo novo.
Já não bastassem as pressões implícitas para tornar todos os indivíduos microempreendedores de si, ainda tivemos um boom de gurus da vida moderna, método de coaching integral sistêmico, apometria quântica, “geração de valor”, que conseguiram deixar a coisa ainda mais minuciosa e complicada. Estabeleceu-se que o indivíduo precisa dar conta de todos os seus aspectos enquanto pessoa, isto é, ter objetivos profissionais, pessoais, familiares, sociais, espirituais e por aí vai.

(Ai, que preguiça!)
O novo “establishment” é que, para empregar mudanças positivas e necessárias em sua realidade (sic), você tem que fazer uma avaliação pessoal abordando uma visão sistêmica da sua vida. A sociedade capitalista descobriu que não adianta perseguir objetivos meramente profissionais e financeiros – você também tem que ser capaz de cuidar da sua saúde (mental e física), dos seus relacionamentos, da sua espiritualidade. E, para isso, você deve definir metas a serem empreendidas em cada uma dessas áreas, voltando à velha lógica de busca incessante de resultados e sonhos. Ou seja, nós não ultrapassamos a louca corrida capitalista, nós apenas a incrementamos com mais e mais requisitos para alcançar a vida ideal.
Na verdade, eu vejo este incremento como uma adaptação do capitalismo à realidade contemporânea, voltando-se para a qualidade de vida sem deixar de lado a lucratividade da coisa. Pensando pelo ponto de vista comercial, seria uma grande perda de oportunidade ignorar a fatia de pessoas (aqui vistas como potenciais consumidores) que simplesmente não possuem grandes ambições materiais, e fazem a linha mais voltada para o crescimento pessoal. Há um generoso nicho de mercado a ser explorado nesta jornada de alcance de metas particulares, desde planner personalizado até chá “desinchante”, e, por que não?, combos de planner personalizado + caixa de chá “desinchante”.
Em síntese, a minha cética conclusão baseada unicamente na minha opinião, é que, para não ter prejuízo, o sistema capitalista adaptou a narrativa e buscou novos tipos de estímulos, que enxertam no indivíduo motivações diferentes de consumo, travestidas de “investimento em si mesmo”. Isto foi uma manobra do sistema para manter o controle sobre o discurso social, e se reintegrar às pessoas enquanto indivíduos – genial, lucrativo e, eu também diria que foi um processo de adequação muito orgânico, como já se poderia esperar de uma sociedade neoliberal.
As pessoas passam a ter hábitos supérfluos que, em tese, irão dar resultados para sua saúde, lazer, desenvolvimento pessoal, relacionamentos. E aí, você olha mais de perto, e percebe que é só uma nova e promissora face do capitalismo, algo sem profundidade, que cria os mesmos tipos de modelos ideais e inalcançáveis, e resultam nos mesmos problemas – ansiedade, baixa autoestima, frustração.
Eu acho ótimo que o debate sobre auto realização tenha sido iniciado nos últimos anos, porém essa conversa ainda precisa ser muito ampliada, porque a solução que atualmente nos é servida é extremamente superficial, e ainda segue a mesma fórmula da corrida louca do enriquecimento: precisamos ter sonhos, precisamos transformar nossos sonhos em metas, precisamos trabalhar e empreender projetos, precisamos conquistar e entregar resultados. Um indivíduo é muito mais complexo que as suas respostas em qualquer teste de personalidade, eneagrama, roda da vida. E, como bem disse uma jovem psicóloga, nem sempre o que o indivíduo quer é o que ele realmente precisa.
Minha infância foi embalada por muita coisa boa que meu pai apreciava, e que eu, na minha infinita curiosidade e inquietação, acabava me apropriando. Foi assim com livros, música, filmes e até mesmo com o prazer de simples atividades domésticas como fazer café coado. Sou uma colecionadora dessas pequenas satisfações, amo de verdade explorar o que está ao meu alcance, fazendo interpretações novas de músicas antigas, lendo livros com títulos esquisitos, me recusando a acreditar nas convenções coletivas.
Eu lembro que meu pai tinha uns álbuns de Raul Seixas, e que, antes mesmo de saber quem ele era, eu ouvi “Metamorfose Ambulante”, e meu coração aquariano saltitou dançante, querendo se explicar a todas as pessoas por meio dessa música.
Sempre fui instável e “do contra”, tão “do contra” que às vezes nem eu me entendo.
Se você pesquisar sobre as características do signo de aquário, provavelmente vai ler que nós, aquarianos, somos vanguardistas, e logo em seguida, vai ler que viemos do futuro. 
E isso é a mais pura verdade, pelo menos no meu caso. Eu amo história, tudo o que é vintage, descobrir o que se passou, me apegar a hábitos antigos e a escolhas seguras.
E também amo o desconhecido, imprevisível, arriscado. Amo experimentações e inovações, ter lugares na cidade que quase ninguém conhece, sair sozinha, fazer o que der na telha. O problema de ser assim é que sempre acabo me esbarrando no que as convenções coletivas esperam de mim. Enquanto esses conflitos de expectativas acontecem lá bem longe, tudo bem. São só cochichos de gente que nem me conhece. Mas às vezes eles surgem de perto, e até de dentro de mim. Porque eu não quero incomodar ninguém sendo quem eu sou, então sinto culpa, às vezes. E às vezes também acho que ninguém tem nada a ver com minha vida. E vivo alternando entre esses pensamentos, inconstante como sempre fui. 
Mas reconheço que já melhorei bastante com relação a estas questões. Tem um livro que nunca li chamado “A sutil arte de ligar o foda-se”, cujo teor desconheço, mas que sempre que vejo nas livrarias, me faz lembrar do meu namorado. Em um relacionamento de tanto tempo (quase oito anos, no caso), absorvemos muita coisa do outro, e essa coisa que ele domina tão bem talvez tenha sido uma das que mais contribuiu com o meu crescimento pessoal: a sutil arte de ligar o foda-se para a opinião alheia.
Quando eu era mais jovem, vivia me questionando o que eu deveria ou não fazer, não porque eu não soubesse o que eu queria, mas porque volta e meia eu queria aquilo que contradizia as convenções coletivas, e, ao mesmo tempo, sentia medo de errar, medo de ser julgada, medo de ser banida do universo coletivo.
Apesar disso, muitas vezes eu atendia aos meus desejos inadequados, desde ir sozinha à praia para ler sob o Sol, até escrever um texto polêmico e enviar para o jornal da cidade – minha mãe guarda até hoje essa edição.


Mas as convenções coletivas sempre estavam lá. Era como ter que atuar em um papel, e chegar a ponto de já não saber o que era real e o que era um roteiro fictício. Era difícil dizer o que eu queria fazer porque eu queria, e o que eu fazia porque deveria querer fazer.
Eu sei que me libertar desses conflitos é um processo em andamento, e inclusive, muito recente. Não só o meu namorado, mas algumas pessoas que encontrei pela vida me inspiraram e encorajaram nessa jornada.
Lembrarei para sempre de uma conversa de menos de um minuto que tive, há quase dois anos, com Izabel – uma colega de trabalho cuja idade não revelarei, que aparenta ser pelo menos 20 anos mais nova do que é de fato.
– Você dirige, Bel? - perguntei casualmente.
– Não, guria, eu não gosto de dirigir. As pessoas sempre falam que eu deveria dirigir, mas eu não gosto, não quero e não vou.
Aquela resposta me arrebatou, porque eu também não gosto de dirigir, mas naquela época achava que eu deveria gostar. Achava que dirigir era o destino inevitável de todo adulto de classe média e que, quanto antes eu aprendesse a gostar, melhor. Naquele dia, pra mim, eu e Izabel éramos Neo e Morpheus, prontos para desafiar a Matrix.
Já ouvi incontáveis vezes, na minha bolha da classe média, que dirigir o seu próprio carro é libertador, mas esse discurso nunca me convenceu muito. Até porque a maioria das pessoas que conheço que possuem um carro ficam completamente sem rumo quando, por algum motivo, estão “desmotorizadas”, incapazes até de ir comprar pão na padaria. Eu agradeço pela sugestão, mas a libertação que eu busco vai além dos prós e contras de ter algo – bastante oneroso, por sinal – para me locomover, quando existem tantas opções de transporte urbano, incluindo a minha favorita: os meus próprios pés.
As convenções coletivas quase me levaram a fazer coisas que até hoje eu sei que seriam extremamente desgastantes pra mim, pelo menos agora. Por exemplo, cursar um mestrado. Eu sei que sou perfeitamente capaz, que tenho “perfil”, que pode ser muito bom pra mim. Acontece que, nesse momento da minha vida, eu não estou disposta a gastar energia nesse tipo de coisa – e talvez nunca esteja, quem sabe?
Pode ser que amanhã eu queira me matricular num mestrado e comprar um carro e ir dirigindo fazer minha pesquisa de campo – e tudo bem, desde que estes desejos surjam de dentro de mim, e não das lendas sociais sobre o que eu “definitivamente preciso fazer”.
Imagina... uma mulher de 27 anos, com todos os privilégios e bênçãos que uma mulher de 27 anos poderia desejar, desperdiçar o seu tempo fazendo algo que ela não quer apenas para satisfazer as insaciáveis convenções coletivas. É como estar no nevoeiro encarando um chalé aquecido, e se convencer que você não merece aquele calor, então permanecer congelando do lado de fora.
Eu não estou dizendo que todos os nossos desejos devem ser coisas fáceis e prazerosas. É óbvio que precisamos empreender esforços nas nossas realizações, sejam elas se tornar um físico especialista em buracos negros de galáxias ativas, ou manter um pequeno jardim vertical no seu apartamento. Talvez o que você deseje fazer seja extremamente desafiador. Porém, enquanto você fizer porque quer, porque sonha com aquilo, porque vai te fazer feliz, o processo será engrandecedor - mesmo incluindo noites sem dormir e dores na lombar.
(Neste ponto, preciso fazer um parágrafo inteiro entre parênteses para abrir outra pauta, que talvez fique para outro texto: você já parou pra pensar sobre como somos pressionados a estar sempre em busca de algo maior, um sonho, um objetivo, algo grandioso? Faz um tempo que saí dessa frenesi capitalista, com sua síndrome de "american dream", palestras motivacionais, técnicas de coaching para atingir resultados. A nossa sociedade romântica não te deu o direito de se eximir de querer algo. Você só será alguém se estiver correndo atrás. O ser humano já não pode querer ficar em paz no seu canto sem ser taxado de preguiçoso ou quadrado.) 
Meu ponto é que as pessoas, muitas vezes, perdem-se executando tarefas que lhe foram atiradas, vivendo vidas idealizadas que em quase nada correspondem as suas reais essências. Não vale a pena esgotar tempo e energia somente seguindo o fluxo que as convenções coletivas ditaram. 
É claro, também, que não estou me referindo às obrigações e responsabilidades – às vezes fazemos coisas só porque deveríamos. Mas precisamos questionar também se esses nossos deveres não foram criações da nossa própria cabeça. Eu costumava pensar, por exemplo, que tinha uma enorme obrigação de promover o bem estar e de cuidar de todos, pelo menos de todos que eu amo.
Até que fui aprendendo que os problemas dos outros não são meus, e que eu posso sim oferecer ajuda (se eu quiser, quando eu quiser), e que isso não significa transferir estes problemas para a minha vida.
Quando você se livra dessa obrigação, também se livra da expectativa de que o outro sempre esteja disposto a te ajudar – até porque, se nem você consegue lidar com os seus problemas, por que o outro deveria estar preparado para lidar com eles?
Além disso, está tudo bem se você precisar se colocar em primeiro lugar. Na verdade, deveríamos fazer isso com mais frequência do que normalmente fazemos. Auto-preservação não é egoísmo.
Todas essas aprendizagens têm me inspirado a ser quem eu sou, conhecer os meus próprios anseios e opiniões, viver com a verdade do meu coração. Cada ser neste mundo deveria buscar a sua essência e respeitá-la, principalmente nós, mulheres, que somos tão educadas para fazer o que esperam que façamos.
O auto-conhecimento é um caminho sem volta, e quanto menos sobrecarregadas estivermos das expectativas alheias, mais tempo nos sobra para viver os nossos reais desejos.
E nesse processo, podemos nos ver com toda a honestidade, encarar e corrigir o que precisa ser melhorado, e também reconhecer e amar o que já está bom. E assim fui aprendendo a me apaixonar por mim mesma – quem eu fui, quem posso ser, e, especialmente, quem eu sou agora.

Primeiro, veio em forma de vozes que eu não queria que estivessem lá. Vozes que não faziam sentido, e só traziam agitação e angústia. Não era pra estarem lá, mas estavam, e não podiam ser silenciadas, nem mesmo adormecidas. Depois, veio por meio de enfermidades, que faziam sangrar e doer. O problema é que as enfermidades atingiram meninas, apenas meninas pequenas, e a dor foi de todos e todas. Então se vestiu de perigo, e veio como um homem armado, e ele puxou o gatilho contra ela. Mas acontece que elas são fortes, as minhas meninas. São todas fortes, e acostumadas a lutar. A vida não é fácil, nunca foi, e as mulheres da minha família adoram desafio. 


As vozes se calaram, uma a uma; as feridas se curaram; ela voltou pra casa, recuperou o fôlego. O mal não nos atinge. Aqui só o bem entra, só o bem fica. Nós cuidamos umas das outras, estamos conectadas e somos inatingíveis. A luz dissipa as trevas, o bem vencerá sempre.


Uma vez eu recebi um vídeo do casal Ike e Tina Turner cantando Proud Mary e fiquei empolgadíssima. Procurei o álbum da dupla e ouvi todo, encantada. E aí resolvi pesquisar sobre eles, quando descobri que Ike agredia a então esposa, tendo dito, inclusive, que era normal um homem bater em sua mulher. Depois de saber disso, não consigo nem lembrar da voz dele sem me sentir mal. Passei a ouvir apenas os álbuns da carreira solo de Tina Turner, que inclusive, recomendo, e abri os olhos para não recair neste erro chamado: apreciar algo vindo de alguém que, sabidamente, é ruim. Erro que também podemos chamar de: passar pano pra gente tóxica.

Não importa se o seu ídolo é talentoso, belíssimo, genial. Se ele faz outras pessoas sofrerem, se ele é prejudicial para o bem-estar e segurança de outras pessoas, ele não merece ser aclamado como se estivesse fazendo um grande favor para a humanidade. Na verdade, ele deve arcar com as consequências, e não simplesmente se safar dos traumas e violências que impeliu a outras pessoas, tão impune como se tivesse construído um castelo impenetrável baseado em seu carisma, talento, ou o que quer que seja.

Boicotar assediadores e pessoas violentas é obrigação moral de todos e todas que se opõem a comportamentos abusivos. O silêncio é fundamental para mantê-los em sua posição confortável, pois a nossa omissão diz: "ele(a) não está fazendo nada demais", "isso é normal". Nós precisamos garantir a nossa própria segurança, e a segurança de eventuais vítimas, e se deixarmos que assediadores sigam com suas vidas e suas carreiras como se nada tivesse acontecido, estaremos permitindo que esse comportamento seja banalizado e que se repita mais e mais vezes.


É certo que depois das denúncias dos assédios nos bastidores de Hollywood, ficou difícil saber quais produções não estão envolvidas com gente do mal, mas para nos ajudar, existe um site chamado Rotten Apples, em que é possível buscar nomes de filmes ou séries para saber quais estão ligados a pessoas acusadas de condutas impróprias.

Mas essas pessoas, e neste ponto me refiro a homens famosos, também estão em outros contextos, como música e esportes. Um dia desses li um comentário em uma rede social que dizia: "nós, mulheres, não podemos ter ídolos do sexo masculino, porque cedo ou tarde nos decepcionamos." É claro que o fato de ser homem não é determinista para comportamento inapropriado. Porém é um fato que a nossa cultura ocidental, assim como muitas outras culturas, perpetra o machismo, que pode atingir mulheres de várias formas: objetificação, assédio, traição, difamação, violência. 

Talvez hoje sejam um pouco menos do que já foram um dia, mas todos estes comportamentos que citei são normalizados. Prova disso é que um homem que todo mundo sabe que agrediu fisicamente sua namorada é até hoje premiado e aclamado pelos fãs. Rihanna precisou ser atendida em um hospital, depois de ter recebido socos, pontapés e mordidas do então namorado Chris Brown. Não por acaso, o cantor recentemente esteve envolvido em mais acusações de violência doméstica e de violência sexual.

Nesta semana, li o excelente "Os homens explicam tudo para mim", de Rebecca Solnit, e em determinado ponto ela afirma: 
"Isso tornou claro para mim o contínuo que se estende de um pequeno incidente social desagradável até o silenciamento violento e a morte violenta (e creio que compreenderíamos melhor ainda a misoginia e a violência contra as mulheres se considerássemos o abuso de poder como um todo, em vez de tratar a violência doméstica em separado do estupro, do homicídio, do assédio e da intimidação, seja on-line ou em casa, no local de trabalho ou nas ruas; quando se vê tudo isso em conjunto, os padrões predominantes ficam bem claros)."
Solnit, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim.

Precisamos romper com estes padrões predominantes, e por isso, eu fiz uma lista.

Faz uns seis meses que começou um processo de novas aprendizagens pra mim. Primeiro foi no período eleitoral. As eleições de 2018 foram importantíssimas para me fazer esclarecer que tipo de pessoa eu quero ser, que tipo de pessoa eu quero perto de mim, o que eu estou disposta a fazer ou não para defender aquilo em que eu acredito. E essas análises não foram meramente baseadas em quem apoiava candidato(a) A ou B, e sim nas ideias, falas e atitudes que pude observar. As eleições, inclusive, não acabaram em outubro. Até hoje o debate ideológico me causa momentos de reflexão, principalmente os discursos que surgem após acontecimentos trágicos - que, para a nossa tristeza, tem sido muitos neste ano de 2019. Muitas "máscaras", por assim dizer, foram despidas diante deste contexto turbulento na seara política.

E não parou por aí. Tive uma experiência pessoal, muito dolorosa, de desentranhar de mim a ideia de um alguém. Uma ideia irreal, de pessoa admirável e querida, que infelizmente, cometeu crimes, revelou-se um indivíduo de muitas facetas, como vidros que refletem imagens diferentes, vidros cortantes que me partiram o coração pelos reflexos sombrios que tive que parar de ignorar, e finalmente, ser capaz de ver, confrontar e rejeitar.

E mais. Deparei-me com outra situação de crime, essa não tão pessoal, mas que também me decepcionou muito, e que me levou novamente a duvidar da minha capacidade de conhecer as pessoas, além de me fazer questionar quais erros eu poderia cometer também, quais erros eu poderia perdoar e quais consequências eu desejo para quem incorre neste ou naquele tipo de erro.


Perante todos estes acontecimentos, que vejo como parte de um mesmo processo, pondero. Queria me despir da necessidade de assumir o papel de juíza, o papel de responsável por punir e corrigir o que está errado, e de agir para que o bem e o correto prevaleçam. Depois, entendi que não posso fugir deste papel, porque enquanto ser social, compete a mim proteger outras pessoas, e para isso, o julgamento, a punição e a correção são necessários.

Carrego, em mim, a cultura de criar empatia e tentar justificar pecados alheios. Como se isso fosse sinônimo de "ser luz". Isso é, na verdade, excesso de complacência. E não é um hábito meu, isolado. Costumamos ser complacentes com crimes do colarinho branco, vide políticos comprovadamente corruptos que são amados e defendidos. Costumamos ser complacentes com relacionamentos abusivos, vide índices de violência doméstica. Costumamos ser complacentes com sonegadores de impostos, crimes ambientais, crimes corporativos. Só não costumamos ser complacentes quando a violação parte da periferia, da pobreza, da pele negra, e atinge outro grupo social. Esta constatação me apavora.

Ser luz requer sabedoria. Por isso, esse processo. Eu aprendi que a impunidade gera malfeitores. Jamais serei contra direitos humanos ou apoiarei ideias violentas e discursos de ódio. O que eu quero combater é a ausência de consequências para crimes e ilegalidades, e isto, essencialmente, requer o declínio da desigualdade com que tratamos os(as) criminosos(as). É uma limpeza de conceitos - antes tarde que mais tarde. 

Nós, privilegiados(as), economica, etnica ou intelectualmente, precisamos também temer as implicações e punições legais para os nossos atos. Precisamos parar de nos proteger como um grupo homogêneo, que prescinde de cárcere, porque é "capaz de conviver em sociedade". Porque o status social é, alegadamente, atestado de caráter. Porque ter um diploma, uma renda, um apartamento, uma família linda ou determinada cor não condiz com o perfil de um(a) criminoso(a). Precisamos parar de atribuir a Deus a responsabilidade pela punição dos(as) nossos(as), como se nós mesmos(as) fôssemos muito frágeis para estabelecer a justiça.
As Livrarias Saraiva e Cultura fizeram pedidos de recuperação judicial em 2018, há poucos meses. Talvez os principais nomes do mercado editorial brasileiro. Talvez, porque não sei nada sobre esse segmento mercadológico. Mesmo assim, sendo uma completa leiga, preciso falar sobre esse tema. Então vamos.

É 'perceptível a olho nu' como mudou a relação das pessoas com os livros. E também como as mudanças culturais e tecnológicas influenciam na literatura, em si, especialmente no hábito de leitura.

Eu quero ler um livrinho.

As livrarias também sabem disso, é claro, e têm tentado se adequar às novas regras do jogo. Mas nós precisamos fazer nossa parte. Nós, enquanto leitores. Enquanto pessoas privilegiadas e esclarecidas. Sim, porque antes de mais nada, algo precisa ser lembrado aqui: nem todo mundo pode ler um livro. Há uma série de recursos valiosos e necessários para que alguém possa se tornar um(a) leitor(a), e infelizmente, apenas uma pequena parcela da nossa população dispõe de tais recursos.

Uma premissa básica para o hábito da leitura é o tempo. Tão simples e tão escasso. As pessoas, mesmo a pequena parcela mencionada, não têm mais tempo de ler. Ou então não é bem isso. Acontece que, ultimamente, rola um bombardeio de imagens, mensagens curtas com letras grandes, onde quer que olhemos, e acabamos ficando desacostumados a ler qualquer coisa que demande alguns minutos. Sabe a preguiça de ler textão? É falta de tempo; ou falta de paciência.

Viramos crianças pequenas, que precisam de estímulos visuais constantemente para manter o interesse por uma história. Ou sempre fomos assim, sei lá. Será que ficar lendo páginas e páginas de letras fonte tamanho 12 requer algum tipo de dom especial? Pode ser que sim.

Mas nós existimos. Somos leitores. E aí é que tá. Eu me faço vários questionamentos sobre esse papel, de leitora.

Por exemplo, quando vejo um(a) youtuber ou celebridade lançar livro, é mais correto pensar: "que bom! Espero que ele possa influenciar os(as) jovens a adquirirem o hábito da leitura"; do que: "que tipo de frivolidades essa criatura poderia ter a dizer num livro?", que é o que me ocorre na maioria das vezes - perdão! Lançar esse tipo de produto é certamente uma estratégia de sobrevivência mercadológica das editoras, mas creio que não se sustenta por serem leituras "esquecíveis". Não seria melhor investir na disseminação da literatura como forma de entretenimento? É uma ideia que pode ser muito mais explorada do que fazer o caminho inverso, de compactar o entretenimento num livro, porque essa é uma via só de ida e termina numa única leitura.

E quando encaro a possibilidade de baixar um livro pirateado em pdf: é crime e mesquinharia ou é um processo de inclusão e expansão do acesso à literatura? Bom, eu mesma tenho a minha resposta pra isso, e acho que esse debate é muito amplo pra que eu chegue a uma conclusão taxativa. Mas queria listar algumas perguntas: se eu posso pagar, por que não o faria? Se o livro é um trabalho, como pagar por ele? Se existem centenas de livros em domínio público e legalmente disponibilizados em domínio público, por que não me interesso por estes? E, enfim, como eu, consumidor(a) de livros, posso movimentar o mercado editorial?

Vai ser difícil, mas precisa ser feito. Não estamos em tempos que nos deem o luxo de perder a literatura. Salvem-na!







2016. Dois anos atrás. O prefeito de São Paulo mandou “desfavelizar” os espaços públicos. A Guarda Civil recolheu papelões e cobertores dos moradores de rua na capital paulista. Ninguém lembra? Eu lembro porque fiquei horrorizada.

- Não é o prefeito de São Paulo aquele cara do PT?
- Isso mesmo, Fernando Haddad.
- Oxe! E por que ele ‘tá’ fazendo isso?
- Quem sabe?!

Não me recordo de outros episódios assim tão chocantes, nem de detalhes dessa gestão petista em SP, mas lembro que foram várias críticas ao cabra, a ponto de ter perdido pro Dória quando tentou reeleição. Mesmo que, por intenções eleitoreiras, tenha tentado passar pano pra golpista dizendo que “golpe é uma palavra muito dura”. Ninguém lembra disso? Golpe, pra mim, é quando a democracia é desrespeitada.

2018. Haddad faz campanha com Calheiros e Eunício de Oliveira, peças-chaves que deixaram o golpe passar. Ninguém viu? Ninguém percebeu o quanto Haddad se afastou de Dilma e se vestiu de Lula?


Tá, agora vamos voltar pra época do impeachment. Porque esse texto aqui é pra falar sobre Ciro Gomes. Faz o favor de pesquisar aí no Google, no Youtube, onde quiser: “Ciro Gomes sobre impeachment”. Não tem tentativa de amenização, o que tem é Ciro chamando Michel Temer de golpista filho da puta com todas as letras. Tem Ciro defendendo a democracia e denunciando o golpe em programas de TV, eventos, palestras, sei lá, onde deu.
Será que alguém lembra que o Ceará foi um dos estados que mais se opôs ao impeachment na Câmara, com votos capitaneados por Ciro? Será que alguém lembra das falas de Ciro intercedendo por Dilma?

O que Ciro recebeu em troca depois de ter defendido amplamente o país de uma ameaça à democracia brasileira quando pessoas mal intencionadas não aceitaram o resultado das urnas:

1. Ao ser perguntada sobre a possibilidade de apoio do PT a Ciro, em uma entrevista, Gleisi Hoffmann disse que Ciro não passava no PT nem com reza brava – e gargalhou.

2. Lula propôs a Ciro que ele participasse da sua chapa, como candidato a vice-presidente, já sabendo que não poderia concorrer e que teria sua candidatura impugnada. Um papelão sabiamente recusado.

3. O PT aleijou celeiros eleitorais, abrindo alas para o PSB, no intuito de evitar a aliança PDT-PSB, o que forçou Ciro a buscar apoio com Katia Abreu.
(A "tal" da Katia Abreu. Tem como gostar dela? Não! Mas será que mais alguém lembra que ela foi expulsa do PMDB por ter feito oposição ao golpe?)

4. Haddad copiou a proposta cirista “Nome Limpo”, que aliás, foi a única proposta concreta e possível dessas eleições que teve repercussão e será lembrada. 

Quem foi mesmo que chamou Bolsonaro de fascista filho da puta antes do primeiro turno? Quem foi que já estava, desde então, desmascarando o candidato do PSL? Quem disse que ele não tinha capacidade de administrar nem um "pé de budega"? Pra Haddad, no primeiro turno, parecia que Bolsonaro era um elefante branco nos debates. Essa impressão é só minha?

Segundo turno e o cenário previsível: PT sem chances de vencer. PT atacando Ciro por ter saído de cena - não apenas os eleitores petistas, mas o próprio PT! Sim, está lá no site do Partido dos Trabalhadores! PT buscando um culpado porque é incapaz de fazer a bendita auto-crítica, sugerida como estratégia política de retomada da governabilidade, por Ciro há muito tempo, por Cid, por Mano Brown.

Ciro é santo? Não! Jamais poderei concordar com sua postura de criticar os oponentes da esquerda durante o processo eleitoral, ainda mais diante do mal eminente; e muito menos com sua fala sobre o movimento Ele Não - não tem contexto que justifique!

Mas jamais acharei justo atribuir a ele uma culpa, por menor que seja, de não ter defendido a democracia, porque isso ele fez! Sua escolha foi não se aliar a um partido ou uma equipe que, por diversas situações, já demonstrou que não merece o seu apoio. Foi uma escolha, inclusive, de honrar com sua palavra de que essa coalizão não ia rolar nem com reza brava. O segundo turno foi assim, dois candidatos rejeitados, sendo que um era muito pior - portanto, voto crítico. Daí a subir em palanque e desfilar abraçando a bandeira vermelha, já são outros quinhentos.

Aliás, se eu mesma tivesse declarado o meu voto publicamente, seria com aquele tema do Facebook: "Jamais vou perdoar Bolsonaro por ter me feito votar no PT". Meu "anti-petismo" é de uma esquerdista que se sente traída pela sede de poder, pelas tentativas de prejudicar qualquer outra opção de esquerda em ascensão, pela incitação ao medo, por buscar culpados para os seus erros ao invés de encará-los e corrigi-los mesmo diante da derrota.

Haddad, apesar de tudo, apesar de não aceitá-lo a princípio, eu acabei mudando a minha visão sobre você, devido a sua postura exemplar neste segundo turno. É uma pena que você seja descartado pelo seu partido como Dilma foi. 

Agora que já acabou, agora sim!, posso perguntar: vai ter ou não a porra da auto-crítica do PT?

Recomendo a leitura desta defesa aqui, feita por uma página cirista, que vale a pena ler mesmo se você for anti-cirista convicta(o), ou cirigaita(o) de carteirinha.






Oi.

Eu nem sabia que dia era hoje. Porque os dias são muito parecidos. A rotina tem suas vantagens e desvantagens, e uma destas é que a semana vira uma coisa só, com períodos de tempo que chamamos de segunda, terça, quarta etc. Eu anoto tudo em um caderno. Mas não tenho disciplina pra usar esse tipo de coisa. Na verdade, eu não tenho capacidade de lidar com o passado tão minuciosamente registrado. Porque escrevo muito bem sobre as coisas pesadas; e as coisas leves... Essas ficam resumidas. Então ler o diário faz parecer que a vida é um fardo.




Eu não consigo nem saber quando foi que começou, ou quando termina. É como fechar os olhos antes de dormir, abrir os olhos e estar no meio de uma reunião no trabalho, fechar os olhos no banho, abrir os olhos e se ver em uma conversa com amigos sobre o descongelamento das calotas polares.

Gosto de viagens contemplativas.