quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

De onde vem

Hoje no ônibus, o ar condicionado estava desligado; as janelas, abertas. Deu pra sentir o cheiro de grama molhada no caminho. Deu pra sentir cheiro de fumaça num trecho da estrada, e de esterco em outra parte. Deu pra perceber quando o vento gelado se transformou numa brisa quentinha, enquanto o dia começava. Fiquei pensando sobre como estou quase sempre enclausurada em veículos selados, respirando um ar artificial, sentindo cheiro de nada. Às vezes, rolam uns momentos assim no ônibus, de ficar observando esses detalhes.

Teve uma vez que aconteceu uma coisa estranha. Estávamos parados no trânsito, e vi um rapaz deitado numa bancada no meio da rua, descansando do trabalho. Ele estava dormindo, e de repente acordou, me olhando e rindo. Como se ele soubesse que eu estava vendo ele. Fiquei meio assustada. Até hoje não sei o que pensar sobre isso.

Outra vez, vi dois irmãos, um menino e uma menina, lavando a varanda de casa. Sei que são irmãos porque são muito parecidos. O menino jogou um balde de água na irmã, e ela caiu na gargalhada. Eu ri também. Deu muita saudade de ser criança e se divertir de verdade nas situações mais improváveis, como ao fazer atividades domésticas.

E teve a melhor vez de todas. Foi assim: eu tava ouvindo Alambradas pela primeira vez, olhando pela janela do ônibus enquanto ia pra casa. (Alambradas é uma banda de estúdio independente, muito amorzinha.) Daí começou a tocar "Mapa dos Arredores", música que sincronizou perfeitamente com o que eu tava pensando, sentindo, e até com o que eu tava vendo naquele exato momento. Parecia que eu era protagonista de um videoclipe. Parecia que eu era eu-lírico da canção.


Mapa dos Arredores
(Alambradas)

As coisas não mudaram muito
Desde a última vez que você me viu
Eu continuo arrancando as folhas do caderno
Sem nem terminar de escrever o que pensei

Já não faço mais tantas baldeações
E olhar pro alto agora tem mais graça
São tantos prédios da metade do caminho pra cá
Vou procurando gente que vê a cidade
Da janela do apartamento


As idas e vindas parecem ficar mais leves
Se, depois do frio e da neblina
Beirando o meio-dia
Vem o sol e o céu muda de cor
Se eu tô de bom humor
Aquele longo trajeto que desgasta
Se torna bonito

Eu reclamo dessa gente
Que ocupa uma calçada inteira
E não me deixa passar
Mas eu nem sei pr'onde tô indo
Se eu corro, parece que minhas próprias pernas
Me puxam pra trás

Ouvi dizer que meu caminho é esse aqui
Quem sabe, eu possa ser grande também
Se me perguntam, bem
Ainda não tenho tanto pra contar

Se as horas no relógio são iguais ao dia
E o mês do meu aniversário
Eu penso que algo bom deve tá pra chegar


Voltando ao episódio de hoje, que fiquei pensando sobre ar condicionados e as coisas ao redor de onde estamos... Essa ideia de se fechar em recintos selados é uma bobagem tão grande! Sem sentir o que está ali, sem olhar a nossa volta, como vamos, de fato, estar lá? Assim não dá pra escrever o mapa dos arredores.

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