segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Auto-conhecimento - um tratado

Minha infância foi embalada por muita coisa boa que meu pai apreciava, e que eu, na minha infinita curiosidade e inquietação, acabava me apropriando. Foi assim com livros, música, filmes e até mesmo com o prazer de simples atividades domésticas como fazer café coado. Sou uma colecionadora dessas pequenas satisfações, amo de verdade explorar o que está ao meu alcance, fazendo interpretações novas de músicas antigas, lendo livros com títulos esquisitos, me recusando a acreditar nas convenções coletivas.
Eu lembro que meu pai tinha uns álbuns de Raul Seixas, e que, antes mesmo de saber quem ele era, eu ouvi “Metamorfose Ambulante”, e meu coração aquariano saltitou dançante, querendo se explicar a todas as pessoas por meio dessa música.
Sempre fui instável e “do contra”, tão “do contra” que às vezes nem eu me entendo.
Se você pesquisar sobre as características do signo de aquário, provavelmente vai ler que nós, aquarianos, somos vanguardistas, e logo em seguida, vai ler que viemos do futuro. 
E isso é a mais pura verdade, pelo menos no meu caso. Eu amo história, tudo o que é vintage, descobrir o que se passou, me apegar a hábitos antigos e a escolhas seguras.
E também amo o desconhecido, imprevisível, arriscado. Amo experimentações e inovações, ter lugares na cidade que quase ninguém conhece, sair sozinha, fazer o que der na telha. O problema de ser assim é que sempre acabo me esbarrando no que as convenções coletivas esperam de mim. Enquanto esses conflitos de expectativas acontecem lá bem longe, tudo bem. São só cochichos de gente que nem me conhece. Mas às vezes eles surgem de perto, e até de dentro de mim. Porque eu não quero incomodar ninguém sendo quem eu sou, então sinto culpa, às vezes. E às vezes também acho que ninguém tem nada a ver com minha vida. E vivo alternando entre esses pensamentos, inconstante como sempre fui. 
Mas reconheço que já melhorei bastante com relação a estas questões. Tem um livro que nunca li chamado “A sutil arte de ligar o foda-se”, cujo teor desconheço, mas que sempre que vejo nas livrarias, me faz lembrar do meu namorado. Em um relacionamento de tanto tempo (quase oito anos, no caso), absorvemos muita coisa do outro, e essa coisa que ele domina tão bem talvez tenha sido uma das que mais contribuiu com o meu crescimento pessoal: a sutil arte de ligar o foda-se para a opinião alheia.
Quando eu era mais jovem, vivia me questionando o que eu deveria ou não fazer, não porque eu não soubesse o que eu queria, mas porque volta e meia eu queria aquilo que contradizia as convenções coletivas, e, ao mesmo tempo, sentia medo de errar, medo de ser julgada, medo de ser banida do universo coletivo.
Apesar disso, muitas vezes eu atendia aos meus desejos inadequados, desde ir sozinha à praia para ler sob o Sol, até escrever um texto polêmico e enviar para o jornal da cidade – minha mãe guarda até hoje essa edição.


Mas as convenções coletivas sempre estavam lá. Era como ter que atuar em um papel, e chegar a ponto de já não saber o que era real e o que era um roteiro fictício. Era difícil dizer o que eu queria fazer porque eu queria, e o que eu fazia porque deveria querer fazer.
Eu sei que me libertar desses conflitos é um processo em andamento, e inclusive, muito recente. Não só o meu namorado, mas algumas pessoas que encontrei pela vida me inspiraram e encorajaram nessa jornada.
Lembrarei para sempre de uma conversa de menos de um minuto que tive, há quase dois anos, com Izabel – uma colega de trabalho cuja idade não revelarei, que aparenta ser pelo menos 20 anos mais nova do que é de fato.
– Você dirige, Bel? - perguntei casualmente.
– Não, guria, eu não gosto de dirigir. As pessoas sempre falam que eu deveria dirigir, mas eu não gosto, não quero e não vou.
Aquela resposta me arrebatou, porque eu também não gosto de dirigir, mas naquela época achava que eu deveria gostar. Achava que dirigir era o destino inevitável de todo adulto de classe média e que, quanto antes eu aprendesse a gostar, melhor. Naquele dia, pra mim, eu e Izabel éramos Neo e Morpheus, prontos para desafiar a Matrix.
Já ouvi incontáveis vezes, na minha bolha da classe média, que dirigir o seu próprio carro é libertador, mas esse discurso nunca me convenceu muito. Até porque a maioria das pessoas que conheço que possuem um carro ficam completamente sem rumo quando, por algum motivo, estão “desmotorizadas”, incapazes até de ir comprar pão na padaria. Eu agradeço pela sugestão, mas a libertação que eu busco vai além dos prós e contras de ter algo – bastante oneroso, por sinal – para me locomover, quando existem tantas opções de transporte urbano, incluindo a minha favorita: os meus próprios pés.
As convenções coletivas quase me levaram a fazer coisas que até hoje eu sei que seriam extremamente desgastantes pra mim, pelo menos agora. Por exemplo, cursar um mestrado. Eu sei que sou perfeitamente capaz, que tenho “perfil”, que pode ser muito bom pra mim. Acontece que, nesse momento da minha vida, eu não estou disposta a gastar energia nesse tipo de coisa – e talvez nunca esteja, quem sabe?
Pode ser que amanhã eu queira me matricular num mestrado e comprar um carro e ir dirigindo fazer minha pesquisa de campo – e tudo bem, desde que estes desejos surjam de dentro de mim, e não das lendas sociais sobre o que eu “definitivamente preciso fazer”.
Imagina... uma mulher de 27 anos, com todos os privilégios e bênçãos que uma mulher de 27 anos poderia desejar, desperdiçar o seu tempo fazendo algo que ela não quer apenas para satisfazer as insaciáveis convenções coletivas. É como estar no nevoeiro encarando um chalé aquecido, e se convencer que você não merece aquele calor, então permanecer congelando do lado de fora.
Eu não estou dizendo que todos os nossos desejos devem ser coisas fáceis e prazerosas. É óbvio que precisamos empreender esforços nas nossas realizações, sejam elas se tornar um físico especialista em buracos negros de galáxias ativas, ou manter um pequeno jardim vertical no seu apartamento. Talvez o que você deseje fazer seja extremamente desafiador. Porém, enquanto você fizer porque quer, porque sonha com aquilo, porque vai te fazer feliz, o processo será engrandecedor - mesmo incluindo noites sem dormir e dores na lombar.
(Neste ponto, preciso fazer um parágrafo inteiro entre parênteses para abrir outra pauta, que talvez fique para outro texto: você já parou pra pensar sobre como somos pressionados a estar sempre em busca de algo maior, um sonho, um objetivo, algo grandioso? Faz um tempo que saí dessa frenesi capitalista, com sua síndrome de "american dream", palestras motivacionais, técnicas de coaching para atingir resultados. A nossa sociedade romântica não te deu o direito de se eximir de querer algo. Você só será alguém se estiver correndo atrás. O ser humano já não pode querer ficar em paz no seu canto sem ser taxado de preguiçoso ou quadrado.) 
Meu ponto é que as pessoas, muitas vezes, perdem-se executando tarefas que lhe foram atiradas, vivendo vidas idealizadas que em quase nada correspondem as suas reais essências. Não vale a pena esgotar tempo e energia somente seguindo o fluxo que as convenções coletivas ditaram. 
É claro, também, que não estou me referindo às obrigações e responsabilidades – às vezes fazemos coisas só porque deveríamos. Mas precisamos questionar também se esses nossos deveres não foram criações da nossa própria cabeça. Eu costumava pensar, por exemplo, que tinha uma enorme obrigação de promover o bem estar e de cuidar de todos, pelo menos de todos que eu amo.
Até que fui aprendendo que os problemas dos outros não são meus, e que eu posso sim oferecer ajuda (se eu quiser, quando eu quiser), e que isso não significa transferir estes problemas para a minha vida.
Quando você se livra dessa obrigação, também se livra da expectativa de que o outro sempre esteja disposto a te ajudar – até porque, se nem você consegue lidar com os seus problemas, por que o outro deveria estar preparado para lidar com eles?
Além disso, está tudo bem se você precisar se colocar em primeiro lugar. Na verdade, deveríamos fazer isso com mais frequência do que normalmente fazemos. Auto-preservação não é egoísmo.
Todas essas aprendizagens têm me inspirado a ser quem eu sou, conhecer os meus próprios anseios e opiniões, viver com a verdade do meu coração. Cada ser neste mundo deveria buscar a sua essência e respeitá-la, principalmente nós, mulheres, que somos tão educadas para fazer o que esperam que façamos.
O auto-conhecimento é um caminho sem volta, e quanto menos sobrecarregadas estivermos das expectativas alheias, mais tempo nos sobra para viver os nossos reais desejos.
E nesse processo, podemos nos ver com toda a honestidade, encarar e corrigir o que precisa ser melhorado, e também reconhecer e amar o que já está bom. E assim fui aprendendo a me apaixonar por mim mesma – quem eu fui, quem posso ser, e, especialmente, quem eu sou agora.

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