terça-feira, 20 de agosto de 2019

Frenesi capitalista

Se tem uma coisa que a sociedade capitalista odeia é a “zona de conforto”. Ficar na zona de conforto é tido como o maior dos pecados, coisa de gente sem firmeza de caráter e que não se esforça o suficiente.
Temos que produzir o tempo todo. Estudar, trabalhar, meditar, fazer exercícios. Você só tem o direito de ser ocioso, às vezes, em seu horário de descanso – que, inclusive, poderia ser melhor aproveitado, com atividades que tivessem alguma utilidade para o mundo, ao invés de perder horas maratonando séries sem conteúdo.
A sociedade capitalista está sempre te perguntando: “quais são os seus sonhos? Aonde você quer chegar? Quais são as suas metas para esse ano?”. E eu vou problematizar cada uma dessas perguntas.
Em sua sólida ilusão romântica, a sociedade capitalista impõe que você tenha sonhos. Determina que qualquer pessoa que valha a pena possui sonhos. E também espera que, ao alcançar seus sonhos, você os substitua por outros. Porque, segundo essa lógica quimérica, as pessoas precisam estar correndo atrás de algo, seja lá o que for, e jamais podem se sentir completamente satisfeitas.
Nem os idosos possuem o direito de se acomodar. Fico impressionada com a comoção que causam notícias como “idoso de 80 anos se forma” etc e tal. Eu não posso deixar de admirar essas pessoas que, provavelmente, não tiveram condições de realizar muitas coisas na vida quando jovens, e que se dedicam para alcançar objetivos já com idade avançada. Mas a comoção geral me impressiona porque vem carregada daquele viés de meritocracia, esforço e recompensa, “você pode fazer tudo o que quiser”. Louros aos idosos que querem morrer estudando, trabalhando, viajando. Aos que só querem jogar xadrez na praça, fazer seu crochê numa velha cadeira de balanço e dormir às seis da tarde, desprezo.
É impensável, para a sociedade capitalista, a possibilidade de que uma pessoa queira, apenas, ficar em paz. Ter um emprego razoável, tempo livre nos feriados e finais de semana, uma rotina comum, férias na praia mais próxima. Quem vive assim, sem empreender grandes feitos, sem correr atrás, é visto como medíocre e infeliz no admirável mundo novo.
Já não bastassem as pressões implícitas para tornar todos os indivíduos microempreendedores de si, ainda tivemos um boom de gurus da vida moderna, método de coaching integral sistêmico, apometria quântica, “geração de valor”, que conseguiram deixar a coisa ainda mais minuciosa e complicada. Estabeleceu-se que o indivíduo precisa dar conta de todos os seus aspectos enquanto pessoa, isto é, ter objetivos profissionais, pessoais, familiares, sociais, espirituais e por aí vai.

(Ai, que preguiça!)
O novo “establishment” é que, para empregar mudanças positivas e necessárias em sua realidade (sic), você tem que fazer uma avaliação pessoal abordando uma visão sistêmica da sua vida. A sociedade capitalista descobriu que não adianta perseguir objetivos meramente profissionais e financeiros – você também tem que ser capaz de cuidar da sua saúde (mental e física), dos seus relacionamentos, da sua espiritualidade. E, para isso, você deve definir metas a serem empreendidas em cada uma dessas áreas, voltando à velha lógica de busca incessante de resultados e sonhos. Ou seja, nós não ultrapassamos a louca corrida capitalista, nós apenas a incrementamos com mais e mais requisitos para alcançar a vida ideal.
Na verdade, eu vejo este incremento como uma adaptação do capitalismo à realidade contemporânea, voltando-se para a qualidade de vida sem deixar de lado a lucratividade da coisa. Pensando pelo ponto de vista comercial, seria uma grande perda de oportunidade ignorar a fatia de pessoas (aqui vistas como potenciais consumidores) que simplesmente não possuem grandes ambições materiais, e fazem a linha mais voltada para o crescimento pessoal. Há um generoso nicho de mercado a ser explorado nesta jornada de alcance de metas particulares, desde planner personalizado até chá “desinchante”, e, por que não?, combos de planner personalizado + caixa de chá “desinchante”.
Em síntese, a minha cética conclusão baseada unicamente na minha opinião, é que, para não ter prejuízo, o sistema capitalista adaptou a narrativa e buscou novos tipos de estímulos, que enxertam no indivíduo motivações diferentes de consumo, travestidas de “investimento em si mesmo”. Isto foi uma manobra do sistema para manter o controle sobre o discurso social, e se reintegrar às pessoas enquanto indivíduos – genial, lucrativo e, eu também diria que foi um processo de adequação muito orgânico, como já se poderia esperar de uma sociedade neoliberal.
As pessoas passam a ter hábitos supérfluos que, em tese, irão dar resultados para sua saúde, lazer, desenvolvimento pessoal, relacionamentos. E aí, você olha mais de perto, e percebe que é só uma nova e promissora face do capitalismo, algo sem profundidade, que cria os mesmos tipos de modelos ideais e inalcançáveis, e resultam nos mesmos problemas – ansiedade, baixa autoestima, frustração.
Eu acho ótimo que o debate sobre auto realização tenha sido iniciado nos últimos anos, porém essa conversa ainda precisa ser muito ampliada, porque a solução que atualmente nos é servida é extremamente superficial, e ainda segue a mesma fórmula da corrida louca do enriquecimento: precisamos ter sonhos, precisamos transformar nossos sonhos em metas, precisamos trabalhar e empreender projetos, precisamos conquistar e entregar resultados. Um indivíduo é muito mais complexo que as suas respostas em qualquer teste de personalidade, eneagrama, roda da vida. E, como bem disse uma jovem psicóloga, nem sempre o que o indivíduo quer é o que ele realmente precisa.

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